sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Ditadura militar » "Havia um espião na minha casa", conta Roberto Pandolfi Roberto Pandolfi denuncia que um oficial da Marinha passou quase um ano infiltrado na casa de sua família

 (Teresa Maia/DP/D.A.Press )
Em uma entrevista marcada pela emoção (em alguns momentos ele chegou a chorar), o atual secretário de Finanças do Recife, Roberto Pandolfi, conta pela primeira vez uma história que sua família manteve em segredo durante 43 anos: um espião da Marinha infiltrou-se na casa deles por quase um ano, ganhou a confiança de todos e privou das conversas mais íntimas da família. Só foi embora após a prisão no Rio da irmã de Pandolfi, Dulce Chaves Pandolfi, que era ligada à ALN e foi uma das presas políticas mais torturadas no regime militar. A casa da família Pandolfi, no Recife, era um ambiente de encontro de pessoas de esquerda, como o ex-prefeito do Recife, Pelópidas da Silveira, cassado pelo golpe militar de 1964. Este é o primeiro caso que se tem notícia de um agente do regime infiltrado numa família. A infiltração era um mecanismo utilizado com sucesso pela repressão, mas sempre direcionada a organizações sindicais, estudantis e de esquerda.

Secretário, vamos começar falando sobre sua família…
Era uma família típica de classe média. Vivíamos bem, estudávamos em bons colégios. Para papai o estudo era tudo na vida. Meu pai, Luiz Pandolfi, era um advogado, professor da universidade, muito ligado às artes, à literatura. Fora crítico de arte. Escrevia muito. Homem de uma cultura enorme. Vivia dos seus livros e de suas obras de arte. Obviamente este mundo era um mundo também de militância política. Se discutia muito política lá em casa. Pelópidas [da Silveira, prefeito do Recife cassado em 64] era nosso vizinho. A garagem dele dava de frente à minha casa. Era uma casa muito frequentada por pessoas de esquerda, gente que foi perseguida no golpe e depois do golpe.

Como foi que se deu a infiltração na sua família?
Meu irmão Carlos estava se preparando para o vestibular de Administração e tinha aulas de reforço de matemática com um professor que morava quase vizinho de Pelópidas. Estávamos em 1970, e nesse ano minha irmã, Dulce, que era a mais engajada, já havia ido morar no Rio de Janeiro. Éramos quatro: Eduardo, Dulce, Carlos e eu, que tinha 17 anos. Então, um dia este professor, que eu não lembro o nome, disse que não podia mais dar aulas e que ia indicar um substituto. Não podemos afirmar, mas também temos sérias desconfianças desse professor, porque a pessoa que ele indicou é que foi o espião.

Quem ele indicou?
Indicou um estudante de engenharia, que se dizia chamar Antônio e que era de Belém do Pará. Esse Antônio passou a praticamente fazer parte de nossa família. Jantava e lanchava lá em casa. Minha mãe gostava muito dele. Ele participava das conversas, fazia perguntas, puxava assunto, parecia muito politizado, e externava opiniões de esquerda, contra o regime militar.

Como era ele, fisicamente?
Moreno claro, forte, cabelo preto, liso, um tipo físico bem do Norte. Eu conversava muito com ele, eu ia fazer vestibular de engenharia, e ele dizia que era estudante de engenharia. Acredito até que fosse mesmo. Era muito bom como professor de matemática. Demonstrava muita cultura política, dizia que era amigo de fulano e sicrano, militantes de esquerda. Acho que ele era infiltrado também na faculdade de engenharia.

O que levou vocês a desconfiarem dele?
Na época ninguém desconfiava. Nós não tínhamos segredos com ele. Ele critivava a ditadura, nós também. A única coisa que não falávamos, porque não falávamos com ninguém, era que Dulce estava no Rio [Dulce era ligada à ALN, a organização da luta armada contra o regime, criada por Carlos Marighela]. Papai orientou toda a família a dizer que ela estava no Chile. Só nós sabíamos que ela não estava no Chile. Tínhamos receios de ela ser presa e não sobreviver. Mas aí, tempos depois, papai nos disse que Antônio dizia que tinha um primo perseguido pela ditadura que precisava fugir para o Chile. “Doutor Pandolfi, preciso tirar meu primo daqui, mandar para o Chile. Como é que Dulce fez para ir pra lá?”, perguntava coisas assim, e papai despistava, mesmo sem desconfiar dele. Dizia que tinha sido uns amigos dela e tal, mas não informava nada de concreto.

Residência da família Pandolfi no Parnamirim. Foto: Teresa Maia/DP/D.A.Press  (Teresa Maia/DP/D.A.Press )
Residência da família Pandolfi no Parnamirim. Foto: Teresa Maia/DP/D.A.Press
Dulce foi presa por informações dele?
Ela foi presa no final de agosto de 1970. Nosso telefone era grampeado, e um dia mamãe deu a entender que tinha uma carta para Dulce. Claudio Ferrário, que era engenheiro da Sudene, ia para o Rio, e mamãe falou com a esposa dele, Mirtes, no telefone, e aí deu a entender essa coisa da carta. Quando Claudio chegou ao Rio foi imediatamente preso, e torturado para dizer onde estava Dulce. Botaram ele no pau-de-arara, uma brutalidade enorme. Ele ainda suportou algumas horas, para ver se Dulce desconfiava e saía da casa. Mas isso não aconteceu e Dulce foi presa. Na carta mamãe dizia “olha, tem nossos primos aí, da família Patury, se precisar de alguma coisa…” Aí prenderam a família Patury todinha, que foi igualmente torturada. A gente não acha que a prisão de Dulce foi por informações do espião, mas por conta do telefonema mesmo.

Dulce foi barbaramente torturada…
Dos presos políticos que estão vivos, talvez tenha sido a mais torturada. Um livro da anistia internacional relata que colocaram um jacaré vivo em cima dela. Ela foi levada primeiro para o Doi-Codi, e acreditamos que só saiu viva porque foi vista por alguém que fora liberado logo depois.

Como agiu sua família?
Papai procurou no Rio o marechal Cordeiro de Farias [que tinha sido governador de Pernambuco de 1955 a 1958]. Foi pedir a transferência de Dulce para o Dops. No seu livro de memórias, Cordeiro de Farias menciona o episódio, sem citar o nome de papai. E diz: “Que país é esse que um pai pede para a filha ir para o Dops?”  [Nesse trecho Roberto se emociona e a entrevista é interrompida].

O pedido foi atendido?
Foi, Dulce foi transferida para o Dops. Foi aí que finalmente papai conseguiu visitá-la. Chegou a 10 metros de distância e não a reconheceu, tão machucada ela estava. Com os choques elétricos que levou, perdeu todas as obturações. Desde essa época eu nunca mais festejei o Réveillon, porque no daquele ano a gente estava muito apreensivo com a situação dela [Dulce foi libertada em 1972.  Hoje é doutora em História e pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, autora de livros importantes sobre a história do Brasil].

Enquanto isso, o professor continuava frequentando a casa de vocês?
Sim, sim. Falava sobre Dulce e tudo mais. Mas pouco mais de dois meses depois da prisão dela, ele disse que ia voltar para Belém do Pará e não podia mais continuar dando aulas. E foi embora. Para todos nós ele tinha ido mesmo morar em Belém.

 (Teresa Maia/DP/D.A.Press )
Quando é que vocês se convenceram que ele fora um agente infiltrado na família?
Em 1972 meu pai resolveu construir uma casa ali onde hoje vai ser o Parque dos Manguezais (Pina). Papai me orientou e eu fui tratar da aprovação do projeto. Eu ia na prefeitura, diziam que o projeto tinha que ser aprovado pela Marinha. Eu ia na Marinha, diziam que eu tinha que ir na prefeitura. Estava pra lá e pra cá, nesse jogo de empurra, quando numa dessas idas à Marinha, ali no Distrito Naval, na Praça do Arsenal (Bairro do Recife), um sargento ficou com pena de mim e disse: “Olha, vamos fazer o seguinte. Você vai ali falar com o capitão fulano de tal (eu não lembro o nome), e ele vai lhe esclarecer tudo”. Indicou uma sala, e eu fui para lá. Era uma sala grande, com móveis bem escuros. Não sei se entrei na porta certa ou se me enganei. Mas aí quando entrei topei de cara com ele, o Antônio, o professor que tinha dito que iria para Belém do Pará. Nunca mais me esqueço disso: ele estava em pé, todo fardado, com aquela farda branca, toda engomada, com o peito cheio de estrelas. A primeira coisa que eu pensei foi: “Nunca mais saio daqui, vão me pegar”.

O senhor tem certeza que era ele?
Certeza absoluta. E ele mesmo me reconheceu, porque se dirigiu a mim de forma bem ríspida e perguntou: “Roberto, o que é que você tá fazendo aqui?” Nem disfarçou para parecer que era outra pessoa. Ele me reconhecera, e pela segunda vez eu pensei “não saio mais daqui…” Aí, apavorado, eu comecei a explicar: “Tô com esse projeto…”, e ele, mais uma vez ríspido: “Isso não é aqui, não!”. Eu disse “obrigado”, virei de costas e fiquei esperando ser agarrado, levar uma gravata, uma pancada. Saí andando rapidamente e ao chegar na rua saí correndo em disparada, disparei mesmo. O escritório de papai também ficava no Bairro do Recife, bem atrás do Banco do Brasil. Saí correndo da Praça do Arsenal e cheguei lá numa carreira só. Quando cheguei lá, mal conseguia falar, só dizia: “Antônio, o professor de Carlinhos, é militar! Antônio, o professor de Carlinhos, é militar!”. Aí ficamos todos preocupados, afinal, eu havia descoberto a identidade de um agente da ditadura, um homem que devia ser do Cenimar [Centro de Informações da Marinha]. Mas nunca mais tivemos notícias dele.

Vocês não cogitaram a hipótese de ele ter feito um concurso e entrado na Marinha?
Não, de jeito nenhum. Ele era uma pessoa que externava opiniões de esquerda, contra a ditadura e tudo mais. Dizia ser amigo de militantes de esquerda e que tinha um primo perseguido pelo regime militar e que precisava tirá-lo do país… Depois disse que ia voltar para Belém do Pará, e aí, menos de dois anos depois está no Distrito Naval, como oficial, com o peito cheio de estrelas?… E ao me ver me trata daquela forma áspera: “O que é que você tá fazendo aqui?”. Era um espião dentro da nossa casa, não temos a menor dúvida que hospedamos um espião. 


Vandeck Santiago - Diario de Pernambuco

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